sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Asas nos pés...


Quando entrou na aula, os pequenos, de pé, junto às carteiras envernizadas, deram os bons dias, em coro, mas sem o ar festivo de outros tempos.
- Podem sentar-se.
Houve um cicio apenas. Aprumadas nos bancos, as crianças ficaram hirtas, atentas, de olhos postos no estrado alto.
Entrava, pelas janelas, o perfume doce dos campos. Sentia-se, ao longe, a sinfonia metálica de um engenho e, perto, no beiral da casa, chilreavam andorinhas, num cortejo frenético e azul.
O professor encarou os alunos.
Na primeira fila, lá estava o Luis, o mais turbulento da classe.
Ia dar a última aula.
Recebera, dias antes, como sentença de morte, a comunicação. Uma comunicação breve, delicada, clara, mas irrevogável. Chegara ao cabo duma longa carreira. Ele tinha de deixar o seu mundo, um mundo de meio século – uma vida inteira !
- Vamos começar !
Comovido, quis desvirtuar a própria comoção. E, engrossando a voz num artificialismo cómico, mentiu, julgando que o acreditariam.
- Sim, porque hoje é um dia como qualquer outro. Ouviram ? Ouviram bem ? E quem não souber a lição... Ah, quem não souber a lição...
Os pequenos continuaram a olhá-lo como figuras de pedra. Mas, em alguns olhos, apareciam lágrimas.
- Vamos à leitura. Página 20.
Desceu porém do estrado, encaminhando-se para uma das janelas abertas.
Lá fora, junto ao caminho, o pequeno carreiro sinuoso que conduzia à escola. O mesmo, como há cinquenta anos atrás, quando ele, vindo de longe, de muito longe, chegara para ocupar o seu lugar de professor.
O sol batia-lhe agora nos cabelos prateados, que desciam quase até à nuca.
Como os anos tinham passado depressa !
Dir-se-ia que o tempo voara impulsionado pelo sortilégio de velhos alquimistas. Fora preciso aquela ordem para lhe lembrar os seus setenta anos.
Setenta anos ! Cuidava-se ainda com vinte.
Voltou-se.
Na sala, o mesmo silêncio – silêncio de morte, silêncio do fim !
- Porque me fitam dessa maneira ? Mas, eu já disse : hoje é um dia como outro qualquer. Porque não fazem barulho ? Porque se não magoam ? Porquê ? Porquê ?
E repisou, erguendo a voz insegura:
- Hoje é um dia como outro qualquer !
Mas, de súbito, virando as costas para a classe, rogou, espalmando, suplicante, a mão direita:
- Saiam. Saiam todos. Deixem-me só. E nem uma palavra. Não me digam nada. Depressa ! Depressa !
O silêncio tornou-se maior, depois, os pequenos levantaram-se e, um a um, foram saindo, de olhos no chão, em bicos de pés. Passaram, daí a pouco, debaixo das janelas, como revoada de pombas a que tivessem cortado as asas. Os pezitos raspavam na terra solta, e nuvens de pó envolviam os babeiros brancos.
Então, o velho professor sentiu chorar atrás de si. Voltou-se, com pânico. O Luis, que ficara no lugar, soluçava baixinho, apoiando a cabeça ao braço esquerdo.
- Luis ! Luis ! Meu filho ! Pois tu...
Foi buscá-lo ao lugar. Apertou-o muito ao peito, beijou-o na cabeça, na testa, na face ( como eu ainda sinto hoje esse aperto e aqueles beijos escaldantes !...).
- Não chores, Luis. Mas, que tolice ! Estás um homenzinho ! Vai chegar um professor novo. Eu já estava velho, meu filho. Muito velho Luis !... ( parece que ainda foi ontem que o ouvi dizer estas palavras !).
O pequeno recobrou o choro.
- Então, então ! Vá, sossega... Olha que eu zango-me ! Luis !...
Depois, com os olhos vidrados de lágrimas, murmurou:
- Senhor ! Senhor ! Levai-me agora !

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O tempo correu, correu depressa.
E, quando a noite descia, o velho rondava a escola, como um namorado intranquilo.
Tacteava as paredes, numa volúpia inexplicável, sentava-se nos degraus, pisava o recreio, misturando, com as suas, as pegadas das crianças.
Adoeceu e esteve à morte.
E, uma noite, ergueu-se de manso, abriu a porta de sua casa e caminhou em frente.
O luar caía como uma benção, toucando os montes e as árvores.
Não ficava longe a escola, que, sob as estrelas, parecia ainda maior projectada no silêncio.
Não havia vento nas ramagens, nem rumores vivos a toda a volta.
Estacou.
- A minha escola ! A minha escola ! Foi dentro dela que a minha vida se gastou. Dias, meses, anos, longos anos de canseiras, de ansiedades de desgostos, e de alegrias.
Gritou:
- A escola é minha !
Mas, as próprias palavras o assustaram.
- Parece-me que gritei ! Se me ouvissem ? Talvez me cuidassem de doido.
E, baixando mais a voz:
- E eu não estou doido ! Ou estarei ? Quem sabe ?!... Quem poderá sabê-lo ?...
O luar espalhava-se mais e mais, adoçando as sombras. As arestas do edifício perdiam a agressividade, de tão iluminadas.
E o silêncio da noite morta quase tornava sonoro o mutismo das coisas inanimadas. As pedras, as árvores, a terra e as flores, iam comunicar entre si. Um fio as separava agora. Um fio que ia romper-se, dum momento para o outro.
- A escola é minha ! Tenho direitos sobre ela ! Sim, direitos ! Ninguém poderá afastar-me. Ninguém ! Estas pedras são a minha carne. Ouves ? Tu ouves ? Durante meio século, eu tive-te nos braços... Não é assim de repente que tudo se poderá acabar. Eles cuidam que sim. Eles não entendem isto. Pensavam que uma lei qualquer seria capaz de terminar com tudo, separar-me, destas pedras íntimas e queridas... A lei ! Acima da lei, está a minha ternura !
Alucinadamente, abriu mais os olhos e estendeu para a frente os braços trémulos. E começou a caminhar...
- «Luis, porque não estudaste a lição ? Estiveste doente, Manuel ? Vai ao mapa, Joaquim. Quem te fez mal, João ? Deu a hora, podem sair !...» Ah, mas eles não fizeram barulho. Porquê ? Têm asas nos pés... De que se haviam de lembrar: asas nos pés ! Assim, não há fruta que vingue. Voam às árvores, transpõem muros, vedações...
« Não chores, Luis ! Estás um homenzinho !...»


E pela manhã, quando os pequenos chegaram à escola, foram encontrar, caído, na escada de pedra, o velho professor.
Tocaram-lhe a medo. Estava frio. Mas, nos seus olhos, muito abertos e parados, havia duas gotas de luar, refulgindo ao sol nascente...


Falripas da Vida Viva

Luis – 2001-05-04

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