domingo, 20 de setembro de 2009

Companheiros...





Realidade ? Sonho ?
Não sei. Jamais atino.
Caprichos do destino...
Quanta verdade eu ponho
naquilo que imagino !?...


Todos os alentejanos sabem que o Pego da Matinha é uma espécie de Judas iscariote de face lisa e amável, que vende e atraiçoa o primeiro. Lençol de águas paradas, bordado de folhas verdes de trevo, fica a dois passos do povo, entalado na mata de eucaliptos, à ilharga do córrego que desce das bandas de Espanha. Ávido e apressado, engole tudo que tenha a imprudência de lhe tocar os bordos – seja pedra que venha a resvalar e a cair, cerro abaixo, seja passo de homem ou bicho mal avisados.
Por isso, quando os filhos saem para a estrada em carreira, a sacola de pano com os livros da escola atirada sobre o ombro, o calcanhar, célere,
a bater o rabo dos calções, as mães vêm à soleira da porta esganiçar a voz num último aviso: « E não passes ao Pego da Matinha. Anda-me de largo, ouvis-te ? »
Contam-se coisas... Do almocreve bêbado que de regresso da feira de Beja lá se foi atascar, levando o burro manso bem atado ao pulso pela arreata; da moça da herdade, neta do porqueiro, que estava à espera dum filho sem pai e lá foi achar no buraco do pego esquecimento para a sua vergonha.
As mulheres benzem-se quando têm de passar-lhe perto, os homens descobrem as cabeças. Mas os moços... a esses parece que os atrai ali voz de sereia, chamando-os das profundezas turvas e limosas. Que talvez seja o próprio aviso rabugento a espicaçar-lhe o desejo de afirmarem uma
independência de pássaro solto no ar : « Não passes ao Pego da Matinha, entendido ? »
A verdade, verdade – é que o pego, largo e espelhado como um rio de águas paradas, é um coalho de rãs, peixes cabeçudos e até de enguias, que lhe trespassam o dorso de súbitos, ziguezagueantes arrepios. E, no Verão, quando o sol cai a pino sobre o mundo esbraseado, fazendo estalar a casca dura das árvores, e coze o coração das próprias aves que tombam do céu de asas retesas e bico entreaberto, o sítio, fechado na cerca rumorosa do eucaliptal, torna-se abençoado túnel de sombra e de frescura.

Porque a tarde era das tais, com um sol de lume vivo a arder no céu, impiedoso, o João e o Manuel tinham de comum acordo resolvido fazer feriado e não pôr os pés na escola. O corpo, alagado em suor, pedia-lhes descanso e fresquidão.
- E se fossemos ao Pego da Matinha ? – lembrou o Manuel – Batíamos lá uma rica sesta. Íamos depois à caça das rãs...
As boas ideias são tão raras que há que as agarrar em ambas as mãos como pássaros fugidios. Foi o que fez o João, pondo-se logo a trotar ao lado do companheiro, estrada fora. Encharcado de sol, o campo abria-se-lhes pela frente, estático e abrasado. O trigo não vira ainda gume de foice e as espigas, pejadas de grão, grossas e cor de ouro, vergavam para o solo as hastes humilhadas. Vasta arca de pão, a planície ali estava, generosa e aberta, à espera de quem quisesse colher-lhe a fartura.
Em quatro passadas, viram-se a pisar as terras secas, esboroadas do ferragial... Daí a alcançarem a mata de eucaliptos, era um salto de coelho. Ainda que o vento descansasse, a viola no saco e o rabo assentado no chão, fosse para as bandas do povo, da charneca ou do montado, ali, murmurava quase sempre uma brisa muito fina, sopro de folhagem ou bater de asas, quem sabe se a respiração presa do próprio rio.
Já de longe, o Manuel atirou pelos ares a sacola de livros que foi embater no tronco de uma árvore com um baque surdo de pinha madura a escachar-se no chão.
- Vamos às rãs ? – propôs.
- E a sesta ? – perguntou o João, afogueado, com grossas gotas de suor a escorrerem-lhe pelo rosto trigueiro.
- Tem tempo!
Descalçaram as botas e as meias listradas e foram, cautelosamente, pisar as margens fofas, avivadas de verdura, do charco adormecido. Uma frescura perfumada de loendro, colou-se-lhes às pernas espalhando-se depois por todo o corpo suado. Pusera-se logo à cata das rãs. Contornaram o pego, silenciosos, na ponta dos pés nus e aproximaram-se da extremidade do córrego tecido de juncos e mentastros onde apontavam, verdoengas e achatadas, como que adormecidas, as cabeças das rãs. Era preciso muita manha, que os estafermos pareciam ter olhos e ouvidos abertos por todo o corpo – mal uma pessoa dava um passo e ia mergulhar a mão na poça, aí voava uma para logo desaparecer, adiante, na fundura do charco. À superfície, a água ficava por momentos a abrir pequenos círculos que eram outros tantos sorrisos silenciosos e trocistas naquela face lisa. Sempre dava uma destas raivas !

Apenas pressentiam, de facto, a lenta aproximação, como se respirassem na aragem da tarde o cheiro excitante do perigo, começavam elas a mover-se e a altear as cabeças onde os olhos apontavam estoirados e fixos.

E ainda mal os rapazes, curvados pelos rins, a deslizarem sem ruído, estendiam o braço, já elas, avisadas pelo demo ou pelas bruxas, formavam o salto, umas atrás das outras, das margens para o lago: Chape ! Chape ! Pareciam carneiros, de inchadas. Mas levezinhas e ágeis, que ninguém diria, subiam ao ar, espalmadas, de pernas abertas, como se lhes tivesse soltado uma mola sob a barriga.
Estupores ! – exclamou Manuel que se pôs a arremessar para a água, raivoso, quantas pedras encontrou debaixo dos pés.
- É deixá-las. Vou-me mas é à sesta – disse o outro.
O corpo, entorpecido de calor, exigia-lhe descanso. Mas Manuel, magro e nervoso, com um focinho inquieto de bicho-furão, contrapôs logo, já desinteressado da caçada:
- Qual sesta ! Tomamos primeiro banho – dormimos depois. Que dizes ?
Já taciturno no modo e tardo na fala, não sentia João correr-lhe o sangue nas veias com o ímpeto imprudente de Manuel. E lembrou:
- Dizem que é perigoso.
- Histórias da carochinha para contar à lareira. Anda embora !
Desapertaram os cintos, tiraram as roupas e entraram nas águas escuras do pego.
Sentiram logo o chão de lodo aluir, silenciosamente, sob os pés que procuravam em vão a firmeza de um apoio. Ao mesmo tempo, toda aquela aparente tranquilidade fendia e estilhaçava: em voos precipitados, aflorando à superfície quebrada, insectos esquisitos, de longas pernas, vinham embater-lhes no corpo; um rato de água emergiu a cabeçorra escura e viva para logo mergulhar assustado. Passou depois, ziguezagueando, o vulto delgado, de uma cobra. Borbulhas de ar vinham a espaços do fundo, rebentavam ao de cima, formadas por lábios misteriosos, de afogados talvez, presos nas profundezas do lodo.
João parou, indeciso, com a água pelo joelho, a pele arrepiada e os sentidos alertados. O pego metia-lhe medo.
Manuel, porém, era feito de outra massa, levedava de rompante, com uma força selvagem, que o impelia cegamente para os espaços abertos sobre qualquer abismo que, imprudente, se recusava depois a medir. Descobrira que tinha asas e queria experimentar-lhes o poder, fosse qual fosse a largueza do horizonte que pretendia conquistar.
De longe, palpou a tibieza do amigo e lançou-lhe a pedrada do riso escarninho:
- Tens medo de molhar o cu, João ?
E, sem esperar resposta, voltou-lhe as costas e fez-se ao largo.
Mas o Pego da Matinha não gosta que lhe quebrem a paz: tem os seus segredos e guarda-os bem guardados nas profundezas soturnas...

A quem se afoita a sondar-lhe os mistérios abre-lhe os braços traiçoeiros, enleia-o suavemente até o puxar de vez fechando-o nas grades naturais de juncos e folhas apodrecidas que lhe forram as paredes.
Quando o Manuel, tarde demais, sentiu que o pego o tinha prisioneiro, gritou pelo João. Foi um grito estarrecido, a vara de surpresa a tranquilidade da tarde.
Pregado às margens do charco, o sangue coalhado nas veias, João era uma estátua de pedra. Quis gritar-lhe que sim, que esperasse, ia acudir-lhe de um salto – mas a garganta cerrou-se-lhe, o medo tolheu-o e, de vontade quebrada, ficou-se a ver o companheiro esbracejar, rouquejando não entendia que angustiado apelo. Por fim apenas ficou de fora um braço que se agitava, que continuava a chamar, que se imobilizou de súbito para acabar por desaparecer também.
Muito tempo depois de tudo consumado, ainda ele ali estava de pé, imóvel, e como que alheado – nuzinho em pelo e todo transido apesar do bafo quente da tarde.
O caminho de regresso, depois, pareceu-lhe longo e estirado, traçado sobre o gume de pedras ou línguas de fogo. E sempre aquele braço fora do lençol escuro das águas, em frente dos olhos, a pedir-lhe socorro, a acenar. Afigurava-se-lhe que, houvesse ele vencido o medo, houvesse ele acorrido como lhe imploravam e o pego não teria levado a melhor. Comprimia os punhos cerrados nos bolsos dos calções, fincava as unhas raivosamente nas palmas das mãos:



« Se não tivesse tido medo... Se não tivesse tido medo...» repetia-lhe em torvelinho o pensamento.
Quando entrou em casa, a mãe não lhe estranhou o silêncio nem a cara fechada. Viu-o vaguear do quarto para a cozinha e da cozinha para o pátio, cozido com a própria sombra – mas não fez caso. De súbito, porém, ei-lo que dispara direito à loja que servia de arrecadação. Saiu de lá com o baraço de corda que usavam para atar a cabra ao tronco da oliveira, atirado ao ombro e apontou outra vez à estrada. A mãe ainda veio à soleira da porta, mais surpreendida do que zangada:
- Ó João !
Mas já o filho ia longe, o velhaco, sapateando o asfalto numa pressa desenfreada.

Se lhe tivessem crescido asas nos ombros, não voaria com tanta rapidez até pousar sem alento, alagado em suor, nas bordas traiçoeiras do charco. O que contava é que estava de regresso, não podia faltar à voz que continuava a chamar por ele, insistentemente – podia lá ! Vencera o receio, deitara-lhe as unhas ao corpo sinuoso, de cobra, e que o enlaçara todo ainda há pouco, a ponto de lhe atar os movimentos. Mas aí estava de volta, aí estava para acudir ao Manuel.

E, sem mesmo descalçar as botas, todo vestido ainda, entrou afoito, de corpo inteiro, na fundura do charco. Tinha ligado ao pulso, com um nó firme, a extremidade da corda. Na outra ponta atara o peso de uma pedra.
- Eh ! Manuel ! – chamou.
« Manueeeel... » - respondeu-lhe o eco, a fazer ricochete, a saltar como um seixo arremessado sobre a superfície quieta das águas.
Assustado, um pássaro de plumagem escura saiu atarantadamente de um novelo de moitas, ganhou forças nas asas e esvoaçou sobre o pego como uma sombra de mau agouro.
- Eh ! Manuel ! – tornou ele a chamar, mais alto, já com a água para cima da cintura.
Calculou a distância a que o braço continuava a chamar fora daquela mortalha de águas paradas e arremessou a corda pelo ar, com força.

Do alto do caminho que descia estreitando em funil apertado entre a mata de eucaliptos, um homem de regresso a casa, terminada a faina do dia, deparou, intrigado, com as estranhas andanças. Tinha já pelos brancos nas barbas, que lhe testemunhavam largos anos de duras experiências, agarrado como um boi pacienta à canga pesada da terra. Sabia coisas – umas de ver com os próprios olhos desencantados que a vida lhe abrira, outras de ouvir contar aos mais velhos do que ele. Por isso não ignorava que o Pego da Matinha era uma cama de limos onde quem quer que nela se deitasse dificilmente de lá sairia. Pôs as mãos em concha e lançou o aviso:
- Eh ! Volta para trás, moço !
De nada serviu. João tinha os ouvidos e os olhos fechados para todos os sinais que lhe viessem do mundo. Via apenas à sua frente, obsessionantemente, o aceno angustioso a clamar auxílio. E foi avançando sempre, estendendo a corda, chegando-lhe o tardio socorro.
O homem deitou então a correr pelo carreiro abaixo. As pedras soltas sob as cardas das botas rolavam-lhe à frente, embaraçavam-lhe o passo, faziam-no tropeçar agora e logo. Se ainda chegasse a tempo ! Se pudesse ainda deitar o garfo das unhas àquele doido varrido ! Mas já um brado de angústia rasgava os ares, ferindo-lhe os sentidos:
- Manuel !
Correu mais depressa, caiu de joelhos, levantou-se e venceu afinal os últimos metros que o separavam do córrego.
Lá em baixo, porém, apanhou-o logo um grande e gélido silêncio. Tão grande tranquilidade era de estarrecer: - nem voo de asa ou sussurro de folha. Tudo quieto e suspenso como se o espanto ou o medo houvessem tolhido, ali, e nessa hora extrema, a própria Natureza.

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Sereno, o Pego da Matinha espelhava o céu já tinto do sangue de um sol moribundo. Face lisa e amável de Judas iscariote.

E de súbito, das poças verdes, entretecidas de juncos e mentastros, rompeu um coro profundo e gutural : eram as rãs , soturnas, a entoar livremente o seu cante... parecendo soar:

Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a razão mesmo vencida,
não deixa de ser razão.


Que importa perder a vida
ainda que em tenra idade,
quando a amizade é sentida
e mais forte que a saudade!...





Falripas do Destino – Volume 1

Luis - 2001-05-23

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