domingo, 20 de dezembro de 2009

Que é Natal, Mãe Maria ?!...




No minuto em que os nervos se rasgaram
calou-se a voz dos grilos, calou-se a voz
das ondas do mar e o mundo estremeceu
e parou...


Antigamente, conta-me Semião, não havia tropas nem aviões de queimar tudo, a noite aparecia com muitos grilos. À roda da palhota e ao longe. Semião, então menino, largava em riso e gritos pelos sulcos do matope, (1) com todas as crianças da povoação. O pai inventava muitas bebidas e a mãe batucava (2) ao luar do planalto...
Agora Semião não brinca nem ri. Sentado à porta da cubata, deixou os olhos perderem-se no silêncio azulado que paira na floresta. A mão tombou-lhe ao lado da perna e o naco de mandioca, já mordiscado, está prestes a escapulir-se-lhe dos dedos.
Semião pensa que a noite perdeu os grilos, que a mãe e outras mulheres já não fazem batuque, que o pai foi para o mato com a espingarda de matar, que muitas famílias desapareceram inteirinhas, por causa da guerra e das cadeias, que o luar agora só dá para ver os pátios das palhotas sem meninos.
Lá dentro, mãe Maria está sentada na esteira e amamenta a mulatinha que tem no colo.
- Semião, já disse a você p’ra ir no cama !
Semião não responde nem obedece: Pensa com força que está triste.
- Semião, já é noite grande ! Eu estar a dizer a você pr’a vir no cama!
Mãe Maria está zangada. Pode mesmo bater. Mas Semião não se levanta. Apenas roda a carapinha empoeirada e tenta descortinar a ira da mãe.
- Semião ! Por que está você esperando ?
- Eu não quer dormir...
- Tem de vir deitar ! Já é noite grande !
- Mas eu não tem sono, mãe. Eu tá pensando.
Maria faz um gesto de enfado e pergunta:
- Onde foi você di tarde, Semião ?
- No missão.
- Padre branco que disse ?
- Hoje vai nascer menino branco no capim e vai dar carrinho de brincar pr’a todos minino preto...

- Sim, hoje é Natal !
- Que é Natal, mãe Maria ?
- Natal é o dia em que nasce o minino branco no capim. Padre branco não explicou pr’a você ?
- Minino branco não deu a mim carrinho de brincar...
- Mas vai dar manhã. Vai dar a padre branco e, depois, padre branco vai dar a você. Mas padre branco só dá se você for sempre no catequese.
- Então Alá já não presta ?
- Todos presta !...
Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são só bestas são homens, Maria.
Corre-se a pontapés os cães na fome dos
dos ossos e não são só cães, são seres
humanos, Maria !


Silêncio...
Semião atira outra vez os olhos grandes para a indecisão azul e negro do horizonte da noite.
- Mãe Maria, eu não importa carrinho de brincar...
- Está triste você, Semião ?
- Sim...
- E porquê ?!
Semião vai responder e volta o rosto, mas as palavras recusam-se a rebentar. Deixa tombar um pouco a fronte pesada, e a mão leva-lhe aos dentes o tubérculo de mandioca.
- Mãe Maria, porque não tem batuque com fogueira ? Eu não importa dessa coisa que traz os branco...
- Semião, vai no cama depressa !... Depressa ! E calado !
Semião arruma o carolo de mandioca, despe o calção roto duma ganga que já não tem cor, põe um pé na esteira de palha e acaba por aninhar-se junto da parede de estascas e capim ressequido.
Mas agora Semião pensa melhor. Recorda branco e gente preto que fugiu no mato, e é muito emocionado com as lágrimas nos olhos que ele me diz:
- Tropa branco vinha no palhota e batia no mãe Maria. No dia em que vinha, tropa mandava sempre Semião brincar lá fora e mãe Maria ficava tempo muito com tropa branco no palhota. Pai não sabia, ele ia cedo no trabalho e só voltava noite grande. Tropa branco muito vinha no palhota de mãe Maria...

O poeta é o que tem a memória límpida
de alguns lugares, onde não foi em data
nenhuma a sua vida....


Foi no outro Natal !...

- Pai gostava maningue (3) de mãe Maria... E mãe Maria deitou de barriga menino mestiço. Pai arranjou espingarda de matar e foi no mato. Nunca mais voltou no casa...
Semião está muito triste... Semião não pode dormir...

Mãe Maria acaba de fechar a porta. Com um sopro apaga o candeeiro, e, logo a seguir, Semião sente-lhe o corpo estendido a seu lado. A escuridão apaga tudo e uma velha manta cobre-os.
Um suspiro, Semião alerta o ouvido. Mãe Maria chora baixinho. Com vergonha. Semião tem fogo ardendo por dentro do peito e da cabeça. Mãe Maria funga o nariz. Semião não trava um desejo súbito de feri-la e diz:
- Eu não importa o carrinho de brincar. Eu quer batuque com fogueira...
Semião ouve um ruído na esteira e encolhe-se, quando uns dedos ásperos se lhe cravam no bracito direito. Vai gritar. As pancadas que, de repente, vibram na porta, sustêm-no. Uma voz ecoa do lado de lá:
- Abre isto !
Mãe Maria levanta-se, acende o candeeiro e escancara a palhota. Entram dois tropas com espingardas de matar. Semião não se mexe. Mãe Maria diz outra vez:
- Semião, vai brincar lá fora você.
- Já não é noite grande, mãe Maria ?...
Semião emerge da manta. Devagar. Olha de relance as rugas furiosas da testa da mãe Maria. Veste-se maquinalmente e procura o pedaço de mandioca, Sai da palhota e volta para a noite...
Pensa:
- Eu não importa carrinho de brincar. Natal é bom com bibida, com batuque e com fogueira. Quando vai acabar esse tropa branco ? Quando pai há-de vir do mato e deitar fora espingarda de matar ?...

(1) Matope: lama
(2) Batucava: dançar ao som do batuque (tambor)
(3) Maningue: muito



Falripas de África – Volume 2

Luis – 2001-11-25

2 comentários:

  1. HISTÓRIA INTERESSANTE.OS TERMOS UTILIZADOS PELO SEMIÃO FAZ-ME LEMBRAR A DÉCADA DE 70 QUANDO NA COMISSÃO DE MORADORES DO POMBAL TIVE O PREVILÉGIO DE DAR ALFABETIZAÇÃO A CABOVERDIANOS

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  2. Interessante ou não...é uma história verdadeira, passada em Moçambique, no actual Maputo, então Lourenço Marques. Semião foi então um dos melhores amigos que até hoje tive. Só com um amigo assim me atreveria a andar à noite pelo musseque... Esta é a minha homenagem ao meu amigo Semião...

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